O LIVRO

O LIVRO

sexta-feira, 19 de março de 2021

Casimiro de Abreu - O poeta da Saudade

í em Friburgo, no Rio de Janeiro, não antes de imortalizar seu nome em nossa história 

Filho de Luiza Joaquina das Neves e do comerciante português, José Joaquim Marques de Abreu, Casemiro José Marques de Abreu nasceu em 04 de janeiro de 1839. Cresceu no distrito de Barra de São João, que hoje pertence ao município Casimiro de Abreu, que o homenageia. Aos dez anos, seus pais o mandaram para o Rio de Janeiro, onde o poeta receberia estudos e aprenderia um ofício. Lá, ele teria seu primeiro emprego em um armazém de secos e molhados que pertencia ao seu pai.

Foi nessa época que Casimiro deu seus primeiro passou na vida boêmia que o marcaria. Grande apreciador da escrita, o poeta  foi mandado para Portugal aos 19 anos, onde manteve sua vida desregrada, mas começou a publicar suas poesias em revistas e jornais da capital lusitana e conheceu o estilo de diversos escritores portugueses. Volta ao Brasil para se tratar da tuberculose que o acometeu eque viria a ser a causa de sua morte. Morre o poeta no dia 18 de outubro de 1860 aos 23 anos de idade.

Temática literária

Dentro da Literatura, Casimiro de Abreu está inserido na segunda geração do Romantismo brasileiro e foi o poeta mais lido e declamado desta época. Ficou conhecido como o “poeta da saudade” por constantemente tratar o tema em seus versos. Além do saudosismo de suas obras, Casemiro de Abreu deu um toque suave a outros assuntos como a natureza e o amor sem a carga de pessimismo e culpa dos românticos da geração anterior.

A musicalidade de seus versos conquistou o público feminino, que se identificava com a mulher descrita pelo poeta. Eram mulheres doces, mas que tinham vidas comuns, colhiam flores e eram comparadas a pássaros. Outras características marcantes são o uso da linguagem coloquial e a valorização de elementos prosaicos.

Diferente de seus contemporâneos, Casimiro de Abreu não idealizou uma mulher perfeita, mas falou principalmente do saudosismo da infância, assunto bastante corriqueiro e sempre atual. O poema Oito Anos, por exemplo, traz elementos doces como o “perfume das flores” e o “céu bordado d’estrelas”. Neste cenário, está refletida a saudade do “ingênuo folgar”, em que “respira a alma inocência”.

Meus oito anos

Casemiro de Abreu

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
Do despontar da existência!
— Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é — lago sereno,
O céu — um manto azulado,
O mundo — um sonho dourado,
A vida — um hino d’amor!

Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d’estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minhã irmã!

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
— Pés descalços, braços nus —
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

…………………………..

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
— Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
A sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!

Outra obra de destaque é Primaveras, em que Casimiro de Abreu seleciona uma série de poemas com seus temas prediletos. Na coletânea, além do saudosismo da infância, é possível conferir a saudade da terra natal, a devoção pela pátria brasileira e a exaltação da juventude. Casimiro de Abreu desdenha o verso branco e o soneto, prefere a estrofe regular, que melhor transmite a cadência da inspiração “doce e meiga” e o ritmo mais cantante.

A exaltação da pátria veio com a influência que Casimiro de Abreu teve na obra de Gonçalves Dias, da primeira geração romântica. Apesar de ser secundária, a temática é bem presente no legado do poeta.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Nossa Literatura - A PAIXÃO DA VERDADE - Rui Barbosa

Rui Barbosa


A PAIXÃO DA VERDADE - Rui Barbosa

A paixão da verdade semelha, por vezes, às cachoeiras da serra.. Aqueles borbotões d’água, que rebentam e espadanam, marulhando, eram, pouco atrás, o regato que serpeia, cantando, pela encosta, e vão ser, daí a pouco, o fio de prata que se desdobra, sussurrando, na esplanada.
Corria murmuroso e descuidado; encontrou o obstáculo, cresceu, afrontou-o, envolveu-o, cobriu-o, e, afinal, o transpõe, desfazendo-se em pedaços de cristal e flores de espuma. A convicção do bem, quando contrariada pelas hostilidades pertinazes do erro, do sofisma, ou do crime, é como essas catadupas da montanha. Vinha deslizando, quando topou na barreira, que se lhe atravessa no caminho. Então remoinhou, arrebatada, ferveu, avultando, empinou-se, e agora brame na voz do orador, arrebata-lhe em rajadas a palavra, sacode, estremece a tribuna, e despe-nha-se-lhe em torno, borbulhando.
Mas o que ela contém e a impele e a revolta, não é cólera, não é destruição, não é maldade: é o poder do pensamento, a vibração da fé, a energia motriz das almas, esse fluido impalpável que se transporta nas ondas indivisíveis do ambiente, e vai, por outras regiões, arder nos espíritos, fulgurar nas trevas humanas, abalar vontades, agitar indivíduos e povos, reanimados ao seu contacto, como os mais maravilhosos instrumentos da indústria, os teares, as forjas, os estaleiros, acordam ao influxo dessa eletricidade silenciosamente bebida, léguas e léguas daí, por um fio de cobre aéreo, nas quedas sonoras do rio. Enquanto, porém, essa transmissão imperceptível opera ao longe maravilhas, renovando a atividade às civilizações, derramando vida pela superfície da terra, a correnteza precipitada que acabou de criar à distância essas descargas da grande força, volve, pouco adiante, ao remanso ordinário de seu curso, perdendo-se entre as devesas do monte e as alfombras da pradaria.
As revoltas da consciência contra as más causas, ainda contra as piores, não azedam um coração desinteressado. O meu tem atravessado as maiores procelas políticas, às vezes sossobra-do, ferido, sangrando no entusiasmo e na esperança, mas sem fel. Não seria este novo encontro, embora duro e violento, com a mentira política, a velha corruptora dos nossos costumes, a sabida arruadeira  das cercanias do poder, a pimpona rixadora do grande mercado, que me induzisse a esquecer, para com as pobres criaturas por ela contaminadas, a lição divina da caridade. Antes de político, me prezo de ser cristão. Não sei odiar os homens, por mais que deles me desiluda. O mal é inexorável, pela consciência de ser caduco. O bem, paciente e compassivo, pela certeza de sua eternidade.


Discurso no Cassino de São Paulo, em 16 de dezembro de 1909, por ocasião da campanha civilista (Excursão Eleitoral ao Estado de São Paulo, 1909, p.93



quinta-feira, 18 de maio de 2017

Nossa Literatura - O SONHO DOS RATOS - Rubem Alves



O SONHO DOS RATOS

Rubem Alves

Era uma vez um bando de ratos que vivia no buraco do assoalho de uma casa velha. Havia ratos de todos os tipos: grandes e pequenos, pretos e brancos, velhos e jovens, fortes e fracos, da roça e da cidade.
Mas ninguém ligava para as diferenças, porque todos estavam irmanados em torno de um sonho comum: um queijo enorme, amarelo, cheiroso, bem pertinho dos seus narizes. Comer o queijo seria a suprema felicidade…Bem pertinho é modo de dizer.
Na verdade, o queijo estava imensamente longe porque entre ele e os ratos estava um gato… O gato era malvado, tinha dentes afiados e não dormia nunca. Por vezes fingia dormir. Mas bastava que um ratinho mais corajoso se aventurasse para fora do buraco para que o gato desse um pulo e, era uma vez um ratinho…Os ratos odiavam o gato.
Quanto mais o odiavam mais irmãos se sentiam. O ódio a um inimigo comum os tornava cúmplices de um mesmo desejo: queriam que o gato morresse ou sonhavam com um cachorro…
Como nada pudessem fazer, reuniram-se para conversar. Faziam discursos, denunciavam o comportamento do gato (não se sabe bem para quem), e chegaram mesmo a escrever livros com a crítica filosófica dos gatos. Diziam que um dia chegaria em que os gatos seriam abolidos e todos seriam iguais. “Quando se estabelecer a ditadura dos ratos”, diziam os camundongos, “então todos serão felizes”…
– O queijo é grande o bastante para todos, dizia um.
– Socializaremos o queijo, dizia outro.
Todos batiam palmas e cantavam as mesmas canções.
Era comovente ver tanta fraternidade. Como seria bonito quando o gato morresse! Sonhavam. Nos seus sonhos comiam o queijo. E quanto mais o comiam, mais ele crescia. Porque esta é uma das propriedades dos queijos sonhados: não diminuem: crescem sempre. E marchavam juntos, rabos entrelaçados, gritando: “o queijo, já!”…
Sem que ninguém pudesse explicar como, o fato é que, ao acordarem, numa bela manhã, o gato tinha sumido. O queijo continuava lá, mais belo do que nunca. Bastaria dar uns poucos passos para fora do buraco. Olharam cuidadosamente ao redor. Aquilo poderia ser um truque do gato. Mas não era.
O gato havia desaparecido mesmo. Chegara o dia glorioso, e dos ratos surgiu um brado retumbante de alegria. Todos se lançaram ao queijo, irmanados numa fome comum. E foi então que a transformação aconteceu.
Bastou a primeira mordida. Compreenderam, repentinamente, que os queijos de verdade são diferentes dos queijos sonhados. Quando comidos, em vez de crescer, diminuem.
Assim, quanto maior o número dos ratos a comer o queijo, menor o naco para cada um. Os ratos começaram a olhar uns para os outros como se fossem inimigos. Olharam, cada um para a boca dos outros, para ver quanto queijo haviam comido. E os olhares se enfureceram.
Arreganharam os dentes. Esqueceram-se do gato. Eram seus próprios inimigos. A briga começou. Os mais fortes expulsaram os mais fracos a dentadas. E, ato contínuo, começaram a brigar entre si.
Alguns ameaçaram a chamar o gato, alegando que só assim se restabeleceria a ordem. O projeto de socialização do queijo foi aprovado nos seguintes termos:
“Qualquer pedaço de queijo poderá ser tomado dos seus proprietários para ser dado aos ratos magros, desde que este pedaço tenha sido abandonado pelo dono”.
Mas como rato algum jamais abandonou um queijo, os ratos magros foram condenados a ficar esperando. Os ratinhos magros, de dentro do buraco escuro, não podiam compreender o que havia acontecido.
O mais inexplicável era a transformação que se operara no focinho dos ratos fortes, agora donos do queijo. Tinham todo o jeito do gato o olhar malvado, os dentes à mostra.
Os ratos magros nem mais conseguiam perceber a diferença entre o gato de antes e os ratos de agora. E compreenderam, então, que não havia diferença alguma. Pois todo rato que fica dono do queijo vira gato. Não é por acidente que os nomes são tão parecidos.


Rubem Azevedo Alves (Boa Esperança, 15 de setembro de 1933 — Campinas, 19 de julho de 2014) foi um psicanalista, educador, teólogo, escritor e ex-pastor presbiteriano brasileiro. Foi autor de livros religiosos, educacionais, existenciais e infantis.É considerado um dos maiores pedagogos brasileiros de todos os tempos, um dos fundadores da Teologia da Libertação e intelectual polivalente nos debates sociais no Brasil. Foi professor da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).






quarta-feira, 17 de maio de 2017

Nossa Literatura - AS ELEIÇÕES DE BRUZUNDANGA - Lima Barreto

                                             





                                                             As eleições na Bruzundanga


Dentre as muitas superstições políticas do nosso tempo, uma das mais curiosas é sem dúvida a das eleições. Admissíveis quando se trata de pequenas cidades, para a escolha de autoridades verdadeiramente locais, quase municipais, como eram na antigüidade, elas tomam um aspecto de sortilégio, de adivinhação, ao serem transplantadas para os nossos imensos estados modernos. Um deputado eleito por um dos nossos imensos distritos eleitorais, com as nossas dificuldades de comunicação, quer materiais, quer intelectuais, sai das urnas como um manipanso a quem se vão emprestar virtudes e poderes que ele quase sempre não tem. Os seus eleitores não sabem quem ele é, quais são os seus talentos, as suas idéias políticas, as suas vistas sociais, o grau de interesse que ele pode ter pela causa pública; é um puro nome sem nada atrás ou dentro dele. O eleito, porém, depois de certos passes e benzeduras legais, vai para a Câmara representar-lhes a vontade, os desejos e, certamente, procurar minorar-lhes os sofrimentos, sem nada conhecer de tudo isto.
A superstição eleitoral é uma das nossas cousas modernas que mais há de fazer rir os nossos futuros bisnetos.
Na Bruzundanga, como no Brasil, todos os representantes do povo, desde o vereador até ao presidente da república, eram eleitos por sufrágio universal, e, lá, como aqui, de há muito que os políticos práticos tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador — "o voto".
Julgavam os chefes e capatazes políticos que apurar os votos dos seus concidadãos era anarquizar a instituição e provocar um trabalho infernal na apuração porquanto cada qual votaria em um nome, visto que, em geral, os eleitores têm a tendência de votar em conhecidos ou amigos. Cada cabeça, cada sentença; e, para obviar os inconvenientes de semelhante fato, os mesários da Bruzundanga lavravam as atas conforme entendiam e davam votações aos candidatos, conforme queriam.
Na capital da Bruzundanga, Bosomsy, onde assisti diversas eleições, o espetáculo delas é o mais ineditamente pitoresco que se pode imaginar.
As ruas ficam quase desertas, perdem o seu trânsito habitual de mulheres e homens atarefados; mas para compensar tal desfalque passam constantemente por elas carros, automóveis, pejados de passageiros heterogêneos. O doutor-candidato vai neles com os mais cruéis assassinos da cidade, quando ele mesmo não é um assassino; o grave chefe de seção, interessado na eleição de F., que prometeu fazê-lo diretor; o grave chefe, o homem severo com os vadios de sua burocracia, não trepida em andar de cabeça descoberta, com dois ou três calaceiros conhecidíssimos. A fisionomia aterrada e curiosa da cidade dá a entrever que se está à espera de uma verdadeira batalha; e a julgar-se pelas fisionomias que se amontoam nas seções, nos carros, nos cafés, e botequins, parece que as prisões foram abertas e todos os seus hóspedes soltos, naquele dia.
Raro é o homem de bem que se faz eleitor, e se se alista, para atender a pedidos de amigos, não tarda que o seu diploma sirva a outro cidadão mais prestante, que no dia do pleito, para fins eleitorais, muda de nome e toma o do pacato burguês que se deixa ficar em casa, e vota com eles. Isto é o que lá se chama: — "um fósforo".
Às vezes semelhantes eleitores votam até com nomes de mortos, cujos diplomas apresentam aos mesários solenes e hieráticos que nem sacerdotes de antigas religiões. Quer um, quer outro serviço eleitoral, constituem os préstimos mais relevantes que se podem prestar aos políticos de profissão.
Tais costumes eleitorais da Bruzundanga são fonte de muitos casos cômicos, mas, por serem quase semelhantes aos que se passam entre nós, abstenho-me de narrá-los. Entretanto, vou dar-lhes o depoimento de um ingênuo e inteligente eleitor, que descreve a sua iniciação eleitoral na Bruzundanga e os característicos do exercício dos direitos políticos que a sua constituição outorga aos cidadãos.
Trata-se de uma das melhores relações que travei naquele país. Ao tempo em que nos conhecemos, ele tinha aí os seus vinte e seis anos e já havia publicado algumas memórias interessantes sobre a paleontologia da Bruzundanga.
Não sei, ao certo, se continuou com brilho a sua estréia brilhante; mas, suspeito que não.
A sociedade da Bruzundanga mata os seus talentos, não porque os desdenhe, mas porque os quer idiotamente mundanos, cheios de empregos, como enfeites de sala banal.
O meio inconsciente de que ela se serve para tal fim, é o casamento.
O rapaz começa a fazer ruído e logo todos o cercam, já os de sua camada, já os de camada superior, se é de extração modesta.
É natural que ele encontre entre tantas damas da roda que o cerca a do seu pensamento.
Ei-lo casado; a mulher, porém, não pode compreender sábio que não ganhe muito dinheiro e viva modestamente. Não compreende nem Spinosa, nem Fabre. Se não se faz católico praticamente, o rapaz, para arranjar bons empregos, faz-se charlatão, acólito de políticos, já não medita, perde a pertinácia, para as pesquisas originais, publica compilações rendosas e enche-se de cargos públicos e particulares. É esta a trajetória de todas as "esperanças" intelectuais da Bruzundanga.
Penso, por isso, que o meu amigo, Halaké Ben Thoreca, como todos os seus iguais, se banalizou com o casamento e a conseqüente cavação de empregos. Tratemos, porém, da sua estréia eleitoral, como ele me contou. Vamos ouvi-lo:
"Pelos meus vinte e dois anos, uma manhã, li um artigo eloqüente em que se lembrava aos bruzundanguenses a necessidade, o dever de inscrever os seus nomes no próximo alistamento eleitoral. Li e fiquei convencido, Depois de árduos trabalhos, obtive o diploma; e, nas vésperas da eleição, pus-me a estudar os manifestos dos candidatos ao cargo espinhoso de deputado. Fiquei perplexo.
Julho Ben Khosta, com mais de vinte anos de prática no ofício de candidato, prometia, caso fosse eleito, propugnar a disseminação de livros e estampas; e, hoje mesmo, apesar de homem feito, passa horas e horas a folheá-los. A promessa de Julho Ben Khosta demoveu-me a empenhar-lhe o meu voto. Não durou muito essa minha resolução. Na mesma coluna dos apedidos do jornal, a plataforma do doutor Karaban acenava-me com uma grande esperança.
Este doutor gastava frases e juramentos, prometendo que faria decretar a aprovação compulsória dos estudantes reprovados.
Calculem que eu tinha quatro bombas em mecânica e, por aí, poderão imaginar como fiquei contente com semelhante candidato.
Foi tiro e queda: decidi votar no doutor Karaban. Saí bem cedo, para almoçar qualquer cousa.
Na pensão um meu amigo pediu-me que votasse no Kasthriotoh. É um moço muito pobre, está quase na miséria, disse-me o amigo, cheio de família; precisa muito do subsídio.
Tive dó e, quando deixei o almoço, tinha o arraigado propósito de votar no indigente Kasthriotoh. Dirigi-me, no dia próprio, para a seção eleitoral, e esperei. Chamaram-me, afinal.
Quase a tremer, no alevantado fito de influir nos destinos da Pátria consegui atravessar por entre duas filas de homens de aspecto feroz, que me olhavam desdenhosamente.
Sentei-me, mostrei o meu título, assinei um livro, depus a cédula na urna e fiquei um momento cismando diante da esbelteza de um longo arco abatido que, de uma única enjambéee com uma flecha relativamente diminuta, vencia, com suave elegância, toda a largura do átrio do palácio vice-real, onde funcionava a seção eleitoral.
Creio que me demorei indecentemente nessa admiração, porque vi as minhas cismas interrompidas pelo grito enérgico do coronel mesário-presidente:
— O senhor não se levanta! berrou o homem. Obedecendo, afastei-me corrido de vergonha e atravessei de novo por entre aquelas mesmas caras ferozes que me tinham visto passar um pouco antes, no alevantado intuito de influir nos destinos da Pátria.
Aguardei o resultado quieto, a um canto.
Estava seriamente interessado em impedir que o pobre Kasthriotoh morresse de fome, com a mulher, filhos, sogra, cunhadas, etc.
Estive assim cerca de duas horas, ao fim das quais alguns daqueles sujeitos horrendos se aproximaram e, fingindo que o faziam às ocultas, começaram a examinar facas, punhais, estoques, garruchas, revólveres, que traziam. Via perfeitamente tais armas e descobri que mesmo para isso é que eles tal cousa faziam.
Fascinaram-me e não pude desviar o olhar. Foi a minha desgraça, Deus dos Céus! Um deles ergueu o chapéu ao alto da cabeça e fez para mim, encarando-me com horrorosa catadura:
— Que está olhando?
— Nada, não senhor; respondi eu.
— Vá... Você está aí com parte de siri sem unha... Arreda!
E, sem saber como, vi-me envolvido em um formidável rolo e levei uma porção de pauladas e quatro facadas.
Mandaram-me para a Santa Casa, onde meu amigo Hanthônio me foi visitar:
— Que foi isto? perguntou-me.
— Direitos políticos.
Depois de restabelecido, vim a saber que o Kasthriotoh não tivera um único voto e arranjara um emprego modesto que lhe dava para fazê-lo viver e mais a família com café e pão sem manteiga. A ata (eu a pude ver mais tarde) estava um primor de autenticidade, pois tinha sido falsificada com toda a perfeição por um espanhol que vivia do ofício eleitoral de falsificar atas de eleições. Eis como foi a minha estréia eleitoral."
Os meus leitores poderão verificar que, no ponto de vista eleitoral, a Bruzundanga nada tem que invejar da nossa cara pátria.

Os Bruzundangas é um livro de autoria do escritor brasileiro Lima Barreto, publicado póstumamente em 1922. Os direitos autorais sobre as crónicas satíricas Notas sobre a República dos Bruzundangas ou Os Bruzundangas foram vendidos ao editor Jacintho Ribeiro dos Santos em 1917. Primeira edição: 1922


Por Lima Barreto. Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) foi um jornalista escritor nascido no Rio de Janeiro. Era filho de João Henriques de Lima Barreto (mulato nascido liberto) e de Amália Augusta Barreto (filha de escrava liberta pela família Pereira de Carvalho).

domingo, 7 de maio de 2017

Nossa Literatura - O ESPAÇO E O TEMPO DO PENSAMENTO






O pensamento não se anuncia. Todas as vezes que tentei marcar hora para pensar, as ideias me fugiram.



NOTEI, NUMA mesa ao lado, uma menina que escrevia e consultava um dicionário. Agachei-me para conversar com ela. “Você está procurando no dicionário uma palavra que você não sabe?”, perguntei.
“Não”, ela me respondeu. “Eu sei o sentido da palavra, mas estou a escrever um texto para os miúdos e usei uma palavra que, penso, eles não conhecem. Como eles ainda não sabem a ordem alfabética e não podem consultar o dicionário, estou a escrever um pequeno dicionário ao pé da página do meu texto para que eles o compreendam.”
“Estou a escrever um texto para os miúdos” foi o que ela disse. Os que já sabem tornam-se naturalmente professores dos que ainda não sabem. Essa é a pedagogia natural das crianças quando elas querem ensinar as outras crianças a brincar. As que sabem ensinam as que não sabem, sem que para isso tenham de saber teorias.
Lembrei-me da deliciosa frase de Daniel Pennac no seu livro “Como um Romance”: “Que espantosos pedagogos nós éramos quando não nos preocupávamos com a pedagogia…”. As relações de aprendizagem e ensino se dão através das pontes poéticas que o amor constrói. A aprendizagem e o ensino são um empreendimento comunitário, uma expressão de solidariedade. Mais que aprender saberes, as crianças estão aprendendo valores de solidariedade. A ética é o ar que se respira silenciosamente, sem explicações, naquela sala imensa.
Numa parede encontrei dois quadros de avisos. Num deles estava escrita a frase: “Tenho necessidade de ajuda em…”. E, no outro, a frase: “Posso ajudar em…”. Qualquer criança que esteja tendo dificuldades em qualquer assunto coloca ali o assunto em que está tendo dificuldades e o seu nome. “Não entendo a regra de três”, assinado “Maria”. O Gabriel, passando por lá, vê a mensagem da Maria e, sem que a professora dê qualquer ordem, procura a Maria para lhe explicar a matemática da regra de três.
Dei-me conta então da importância da arquitetura no espaço escolar. A arquitetura, ao estabelecer espaços, determina os caminhos possíveis e permitidos. É preciso que os espaços sejam livres para que as relações aconteçam com liberdade. A arquitetura de corredores e salas, comum em nossas escolas, aprisiona as relações.
Lembrei-me então do que me dissera a menina ao me informar que também não havia separações no tempo. Relógios e campainhas são artifícios para obrigar o pensamento a fazer ordem unida. Toca a campainha: é hora de pensar matemática, 45 minutos pensando matemática. Toca a campainha, é hora de parar de pensar matemática, hora de pensar geografia, 45 minutos pensando geografia, toca a campainha, hora de parar de pensar geografia, hora de pensar literatura…
Os toques de campainha ou qualquer artifício semelhante contêm uma psicologia do pensamento. Como se o pensamento obedecesse às ordens do relógio. Algo semelhante ao que acontece com os programas de televisão: a marcação das horas liga e desliga os “programas” do pensamento.
Vez por outra um curioso me pergunta sobre as horas que separo para pensar… Sei não… Talvez as horas de insônia ou debaixo do chuveiro ou numa viagem de carro ou avião… O pensamento não se anuncia. Ele simplesmente vem. Todas as vezes que tentei marcar hora para pensar, as ideias me fugiram.
Rubem Alves

sexta-feira, 5 de maio de 2017

NOSSA LÍNGUA - Dia Internacional da Língua Portuguesa





O Dia Internacional da Língua Portuguesa e da Cultura é comemorado anualmente em 5 de maio entre os países lusófonos.
Esta data celebra a importância cultura e histórica da língua portuguesa para toda a Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP)
Durante esta data, os países que formam a CPLP promovem eventos especiais na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York.

Vamos conhecer um pouco da história da língua portuguesa.


                                               HISTÓRIA DA LÍNGUA PORTUGUESA

Nossa língua é formada a partir de várias outras: as dos povos iberos e celtas, que viveram onde hoje é Portugal: o latim (vulgar e culto), dos romanos, que estenderam seu império até a Península Ibérica: o grego, de dialetos bárbaros, principalmente o dos visigodos, que viveram naquela região na idade Média; a dos árabes, que também dominaram a região;  as de etnias africanas  e indígenas (nesses dois casos, no Brasil, durante a colonização); o francês e o inglês, mais recentemente. Por isso, deve-se relativizar a dita "pureza" de uma língua, já que elas comumente são formadas por vários acréscimos. Atualmente, fala-se muito na influência da língua inglesa sobre a portuguesa , do quanto isso pode ser danoso, reflexo negativo da globalização como dominação cultural, combatida através da criação de medidas, inclusive leis. Contudo, há quem defenda que o incentivo para que a população valorize melhor seu idioma, através da educação de qualidade, seja uma maneira melhor de preservar nossa língua.

  O português é conhecido como "a língua de Camões" (em homenagem a uma das mais conhecidas figuras literárias de Portugal, Luís Vaz de Camões, autor de Os Lusíadas) e "a última flor do Lácio" (expressão usada no soneto Língua Portuguesa, do escritor brasileiro Olavo Bilac ). Miguel de Cervantes, o célebre autor espanhol, considerava o idioma "doce e agradável".  Em março de 2006, o Museu da Língua Portuguesa, um museu interativo sobre o idioma, foi fundado em São Paulo, Brasil, a cidade com o maior número de falantes do português em todo o mundo.



   
          LÍNGUA PORTUGUESA
                                     Olavo Bilac




Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...

Amo-te assim, desconhecida e obscura.
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o tom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!





   

sábado, 29 de abril de 2017

Nossa Literatura - O ACENDEDOR DE LAMPIÕES - Jorge de Lima



O ACENDEDOR DE LAMPIÕES
                        Jorge de Lima

Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender imperturbavelmente,
À medida que a noite aos poucos se acentua
Acendedor de lampião

E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita: —
Ele que doira a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões da rua!

COUTINHO, Afrânio (org.). Jorge de Lima. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar, 1958, vol. I. p.208

Jorge de Lima



A POESIA PRECISA E PRECIOSA DE JORGE DE LIMA

Personalidade artística complexa e diversificada, Jorge de Lima nasceu na cidade de União, Alagoas, em 23 de abril de 1893 e morreu no Rio de Janeiro,em 15 de novembro de 1953. Sua carreira de artista está marcada por uma busca incessante de meios de expressão. Foi poeta, romancista, ensaísta, pintor, escultor. E como poeta, seu princípio unificador, situou-se nas cumeeiras da literatura brasileira. Seu roteiro poético inclui transformações constantes. Fez poesia metrificada, poesia livre, livro de fotomontagem e poema em prosa. Passou pela temática folclórica, religiosa. E publicou desde os XIV Alexandrinos (1914), passando pelo antológico Essa Negra Fulô (1928), até os originalíssimos versos de Anunciação e Encontro de Mira-Celi (1950), Livro de Sonetos (1949) e Invenção de Orfeu (1952), poema épico em 10 cantos.
A um tempo regional e cósmico,clássico e modernista, profano e místico, Jorge de Lima foi, talvez, o poeta mais versátil do Brasil e suas metamorfoses chegaram até a irritar alguns críticos. Mas é necessário reconhecer: em todas as fases Jorge de Lima nunca deixou de ser poeta --e dos melhores. E o seu itinerário é coincidente com as principais etapas percorridas pela poesia brasileira no século passado. Outro aspecto curioso foi relatado por José Fernando Carneiro, médico e amigo de Jorge. Segundo Carneiro "os 77 sonetos que formam o Livro de Sonetos e mais 25 que não foram publicados, ao todo mais de 100, foram escritos em estado hipnogógico, no espaço de 10 dias apenas, levantando-se Jorge de Lima, às vezes de madrugada, e compondo de uma vez três, quatro, cinco sonetos. Limitar-me-ei a referir que foram escritos em momento de grande angústia, quando seu autor começou a sonhar acordado, e a ver, diante de si, entre outras coisas, o galo da igreja do Rosário, a draga da praia de Pajuçara bem defronte de sua casa, e a pretinha Celidônia, que morreu afogada no rio Mundaú".

Por Rubens Jardim