O LIVRO

O LIVRO

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016




Sonho de um sonho


( Carlos Drummond de Andrade, do livro Claro Enigma )


Sonhei que estava sonhando

e que no meu sonho havia

um outro sonho esculpido.

Os três sonhos superpostos

dir-se-iam apenas elos

de uma infindável cadeia

de mitos organizados

em derredor de um pobre eu.

Eu que, mal de mim, sonhava.


Sonhava que no meu sonho

retinha uma zona lúcida

para concretar o fluido

como abstrair o maciço.

Sonhava que estava alerta,

e mais do que alerta, lúdico,

e receptivo, e magnético,

e em torno de mim se dispunham

possibilidades claras,

e, plástico, o ouro do tempo

vinha cingir-me e dourar-me

para todo o sempre, para

um sempre que ambicionava

mas de todo ser temia...

Ai de mim, que mal sonhava.


Sonhei que os entes cativos

dessa livre disciplina

plenamente floresciam

permutando o universo

uma dileta substância

e um desejo apaziguado

de ser um com ser milhares,

pois o centro era eu de tudo,

como era cada um dos raios

desfechados para longe,

alcançando além da terra

ignota região lunar,

na perturbadora rota

que antigos não palmilharam

mas ficou traçada em branco

nos mais velhos portulanos

e no pó dos marinheiros afogados em alto mar.


Sonhei que meu sonho vinha

como a realidade mesma.

Sonhei que o sonho se forma

não do que desejaríamos

ou de quanto silenciamos

em meio a ervas crescidas,

mas do que vigia e fulge

em cada ardente palavra

proferida sem malícia,

aberta como uma flor

se entreabre: radiosamente.


Sonhei que o sonho existia

não dentro, fora de nós,

e era tocá-lo e colhe-lo,

e sem demora sorve-lo,

gastá-lo sem vão receio

de que um dia se gastara.


Sonhei certo espelho límpido

com a propriedade mágica

de refletir o melhor,

sem azedume ou frieza

por tudo que fosse obscuro,

mas antes o iluminando,

mansamente o convertendo

em fonte mesma de luz.

Obscuridade! Cansaço!

Oclusão de formas meigas!

Ó terra sobre diamantes!

Já vos libertais, sementes,

germinando à superfície

deste solo resgatado!


Sonhava, ai de mim, sonhando

que não sonhara... Mas via

na treva em frente a meu sonho,

nas paredes degradadas,

na fumaça, na impostura,

no riso mau, na inclemência,

na fúria contra os tranqüilos,

na estreita clausura física,

no desamor à verdade,

na ausência de todo amor,

eu via, ai de mim, sentia

que o sonho era sonho, e falso.

Nenhum comentário:

Postar um comentário