Rui Barbosa
A PAIXÃO DA VERDADE - Rui Barbosa
A paixão da verdade semelha, por vezes, às cachoeiras da serra.. Aqueles borbotões d’água, que rebentam e espadanam, marulhando, eram, pouco atrás, o regato que serpeia, cantando, pela encosta, e vão ser, daí a pouco, o fio de prata que se desdobra, sussurrando, na esplanada. Corria murmuroso e descuidado; encontrou o obstáculo, cresceu, afrontou-o, envolveu-o, cobriu-o, e, afinal, o transpõe, desfazendo-se em pedaços de cristal e flores de espuma. A convicção do bem, quando contrariada pelas hostilidades pertinazes do erro, do sofisma, ou do crime, é como essas catadupas da montanha. Vinha deslizando, quando topou na barreira, que se lhe atravessa no caminho. Então remoinhou, arrebatada, ferveu, avultando, empinou-se, e agora brame na voz do orador, arrebata-lhe em rajadas a palavra, sacode, estremece a tribuna, e despe-nha-se-lhe em torno, borbulhando. Mas o que ela contém e a impele e a revolta, não é cólera, não é destruição, não é maldade: é o poder do pensamento, a vibração da fé, a energia motriz das almas, esse fluido impalpável que se transporta nas ondas indivisíveis do ambiente, e vai, por outras regiões, arder nos espíritos, fulgurar nas trevas humanas, abalar vontades, agitar indivíduos e povos, reanimados ao seu contacto, como os mais maravilhosos instrumentos da indústria, os teares, as forjas, os estaleiros, acordam ao influxo dessa eletricidade silenciosamente bebida, léguas e léguas daí, por um fio de cobre aéreo, nas quedas sonoras do rio. Enquanto, porém, essa transmissão imperceptível opera ao longe maravilhas, renovando a atividade às civilizações, derramando vida pela superfície da terra, a correnteza precipitada que acabou de criar à distância essas descargas da grande força, volve, pouco adiante, ao remanso ordinário de seu curso, perdendo-se entre as devesas do monte e as alfombras da pradaria. As revoltas da consciência contra as más causas, ainda contra as piores, não azedam um coração desinteressado. O meu tem atravessado as maiores procelas políticas, às vezes sossobra-do, ferido, sangrando no entusiasmo e na esperança, mas sem fel. Não seria este novo encontro, embora duro e violento, com a mentira política, a velha corruptora dos nossos costumes, a sabida arruadeira das cercanias do poder, a pimpona rixadora do grande mercado, que me induzisse a esquecer, para com as pobres criaturas por ela contaminadas, a lição divina da caridade. Antes de político, me prezo de ser cristão. Não sei odiar os homens, por mais que deles me desiluda. O mal é inexorável, pela consciência de ser caduco. O bem, paciente e compassivo, pela certeza de sua eternidade.
Discurso no Cassino de São Paulo, em 16 de dezembro de 1909, por ocasião da campanha civilista (Excursão Eleitoral ao Estado de São Paulo, 1909, p.93
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