'PELO RALO"
Este conto foi inspirado nos atentados de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York.
A mulher se aproxima, os olhos fixos na pia. Suas mãos, cujos dedos exibem dobras ressecadas, resultado de muitos anos de contato com água e detergente, movem-se em torno da cintura e caminham até as costas, levando as tiras do avental vermelho e branco. Com gestos rápidos, ágeis, faz-se a laçada, que ajusta o avental em seu lugar. E a mulher abre a torneira. Encostada à pia, espera, tocando a água de vez em quando com a ponta dos dedos. Ligou o aquecedor no máximo, pois sabe que precisará dela fumegante, para derreter as crostas formadas depois de tantas horas. Logo o vapor começa a subir. Emana da pia, primeiro lentamente, depois numa nuvem mais encorpada, quase apocalíptica, enquanto o jato d’água chia contra a superfície da louça suja. A mulher despeja algumas gotas de detergente na esponja e começa a lavar. Esfrega com vigor, começando pelas travessas que estavam imersas na água parada, pegando em seguida os copos e, por fim, a pilha de pratos. Vai acumulando-os, já envoltos em espuma, de um dos lados da pia, num trabalho longo, árduo. E só depois se põe a enxaguá-los, deixando que a água escoe, levando consigo o que resta dos detritos.
De repente, a mulher sorri. As pessoas não acreditam, mas ela gosta de lavar louça. Sempre gostou. A sensação da água quente nas mãos, seu jato carregando as impurezas, são para ela um bálsamo. “É bom assistir a essa passagem, à transformação do sujo em limpo”, ouviu dizer um dia um poeta, que também gostava de lavar louça. Ficara feliz ao ouvir aquilo. Só então se dera conta do quanto havia de beleza e poesia nesses gestos tão simples. Mas agora a mulher suspira. Queria poder também lavar os erros do mundo, desfazer seus escombros, apagar-lhe as nódoas, envolver em sabão todos os ódios e horrores, as misérias e mentiras. Porque, afinal, do jeito que as coisas andam, é o próprio mundo que vai acabar – ele inteiro – descendo pelo ralo. (16.09.2011)
Heloísa Seixas - A escritora Heloísa Seixas nasceu no Rio, onde mora. É autora de mais de dez livros, entre eles os romances "A porta" (Record, 1996), "Diário de Perséfone" (Record, 1998), "Através do vidro" (Record, 2001) e "Pérolas absolutas" (Record, 2003). "A porta" e "Pérolas absolutas" foram finalistas do Prêmio Jabuti, assim como "Pente de Vênus" (Sulina, 1995, Record 2000), de contos, seu livro de estreia. Heloisa, que durante sete anos escreveu a coluna “Contos mínimos” no Jornal do Brasil, é também autora de um livro sobre o mal de Alzheimer, "O lugar escuro" (Objetiva, 2007).
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