O LIVRO

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terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Nossa Literatura - O JOGO - Rui Barbosa

Rui Barbosa
O  JOGO
De todas as desgraças que penetram no homem pela alma, e arruinam o caráter pela fortuna, a mais grave é, sem dúvida nenhuma, essa: o jogo na sua expressão mãe, o jogo na sua acepção usual, o jogo propriamente dito; em uma palavra, o jogo: os naipes, os dados, a mesa verde.
Permanente como as grandes endemias que devastam a humanidade, universal como o vício, furtivo como o crime, solapado no seu contágio como as invasões purulentas, corruptor de todos os estímulos morais como o álcool, êle zomba da decência, das leis e da polícia, abarca no domínio das suas emanações a sociedade inteira, nivela sob a sua deprimente igualdade todas as classes, mergulha na sua promiscuidade indiferente até os mais baixos volutabros do lixo social, alcança no requinte das suas seduções as alturas mais aristocráticas da inteligência, da riqueza, da autoridade: inutiliza gênios; degrada príncipes; emudece oradores; atira à luta política almas azedas pelo calástismo habitual das paradas infelizes, à família corações degenerados pelo contacto cotidiano de todas as impurezas, à concorrência do trabalho diurno os náufragos das noites tempestuosas do azar; e não raro a violência das indignações furiosas, que vêm estuar no recinto dos parlamentos, é apenas a ressaca das agitações e dos destroços das longas madrugadas do cassino.
Quantos destinos não se contam por ai dominados exclusivamente na sua irremediável esterilidade pela ação desse fadário maligno! Quantas vidas, que a natureza dotara de prendas excelentes para a felicidade própria e o bem dos seus semelhantes, no descontentamento, na revolta, na inveja, na malevolência habitual! Quantos fenômenos inexplicáveis de reação, de cólera, de ódio ao que existe, de despeito contra o que dura, de guerra ao que se eleva, de irreconciliabilidade com o que não se abaixa, não tem a sua origem nos contratempos e amarguras dessas existências aberradas, que, sacudidas continuadamente pelas emoções do inesperado, se alimentam das suas surpresas, se estiolam com as suas decepções, e, vendo a felicidade repartir-se às cegas pela superfície do tabuleiro verde, acabam por supor que a sorte de todos, neste mundo, se distribui com a mesma casualidade, com a mesma desproporção, com a mesma injustiça, acabam por ver no merecimento, no esforço, na economia, na perseverança, coisas fictícias, estranhas ou hostis, acabam por confundir o sudário divino dos mártires do trabalho, com a pobreza exprobratória em que a ociosidade amortalha os desclassificados de todas as profissões!
Esse mal, que muitas vezes não se separa do lupanar senão pelo tabique divisório entre a sala e a alcova; essa fatalidade, que rouba ao estudo tantos caracteres, ao dever doméstico tantas virtudes, à pátria tantos heroísmos, reina, sob a sua manifestação completa, em esconderijos, onde a palavra se abastarda no salão, onde a personalidade humana se despe do seu pudor, onde a embriaguez da cobiça delira cínica e obscena, onde os maridos blasfemam pragas improferíveis contra a sua honra conjugai, onde, em comunhão odiosa, se contraem amizades inverossímeis, onde o menos que se gasta é o equilíbrio da alma, o menos que se arruina é o ideal, o menos que se dissipa é o tempo, estofo precioso de todas as obras-primas, de todas as utilidades sólidas, de todas as ações grandes.
Inumerável é o número de criaturas, que a tentação, o exemplo, o instinto, o hábito, o acaso, a miséria, levam a passar por esses latíbulos, cuja clientela vai periodicamente fazer-se apodrecer ali, por gozo, por necessidade, por avidez, e na corrupção de cujos mistérios cada iniciado se afaz a ir deixando ficar aos poucos a energia, a fé, o juízo, a nobreza, a honra, a temperança, a caridade, a flor de todos os afetos, cujo perfume embalsama e preserva o caráter.
Aqueles, que, por uma reação do horror no fundo da consciência, logram salvar-se em tempo desses tremendais, poderiam escrever a história da natureza humana vista sob aspectos inomináveis. Outros, porém, presas da vasa, que nunca mais os larga, rolam, e imergem nela de decadência em decadência, cada vez mais saturados, cada vez mais infelizes, cada vez mais afundados no infortúnio, até que a piedade infinita do termo de todas as coisas lhes recolha ao seio do eterno esquecimento, os  restos inúteis de um destino sem epitáfio.
Eis o jogo, o putrefador. Diátese cancerosa das raças anemizadas pela sensualidade e pela preguiça, êle entorpece, caleja e desviriliza os povos, nas fibras de cujo organismo insinuou o seu germe proliferante e inextirpável.
Os desvarios do encilhamento vão e passam como rápidos temporais. São irregularidades violentas das épocas de prosperidade e esperança. Só o jogo não conhece remitências: com a mesma continuidade com que devora as noites do homem ocupado e os dias do ocioso, os milhões do opulento e as migalhas do operário, tripudia uniformemente sobre as sociedades nas quadras de fecundidade e de penúria, de abastança e de fome, de alegria e de luto. É a lepra do vivo e o verme do cadáver.
Se o Tácito do encilhamento, o historiador implacável, o grande moralista, o reformador imaculado, o missionário de tantas regenerações, se acha puro, como eu lhe desejaria, de cumplicidade na propagação de tal flagelo, imploremos de S. Exa. que volte a sua palavra apostolar contra esta praga, cuja atualidade é perene, em vez de malbaratar esforços tão úteis contra um mal que acabou e não há receio de voltar. No caso contrário, aprenda, meditando o nosce te ipsum, a ser cometido, temperante e discreto.
                                            Coletânea Literária

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