Inspirada por uma visita a Ouro Preto, Cecília Meireles
compôs esse poema de temática social, que evoca a luta pela liberdade no Brasil
do século XVIII e incorpora elementos dramáticos, épicos e líricos
Fruto de longa pesquisa histórica, Romanceiro da Inconfidência
é, para muitos, a principal obra de Cecília Meireles. Nesse livro, por meio de
uma hábil síntese entre o dramático, o épico e o lírico, há um retrato da
sociedade de Minas Gerais do século XVIII, principalmente dos personagens
envolvidos na Inconfidência Mineira, abortada pela traição de Joaquim Silvério
dos Reis, o que culminou na execução de Tiradentes.
GÊNERO ROMANCEIRO
O gênero romanceiro é uma coleção de poesias ou canções de
caráter popular. De tradição ibérica, surgiu na Idade Média e é, em geral, uma
narrativa com um tema central. Cada parte tem o nome de romance – que não deve
ser confundido com a denominação do atual gênero em prosa.
Nessa obra de Cecília Meireles, há 85 romances, além de
outros poemas, como os que retratam os cenários. Em sua composição, é utilizada
principalmente a medida velha, ou seja, a redondilha menor, verso de cinco
sílabas poéticas (pentassílabo) e, predominantemente, a redondilha maior, verso
de sete sílabas (heptassílabo), como ocorre na “Fala Inicial”:
Não posso mover meus passos
por esse atroz labirinto
de esquecimento e cegueira
em que amores e ódios vão:
(...)
No entanto, deve-se observar que, por ser uma autora
moderna, Cecília não se prende totalmente a esse modelo. Vale-se, também, de
versos mais curtos, de quatro sílabas, como em “Fala aos Inconfidentes Mortos”:
Treva da noite,
lanosa capa
nos ombros curvos
dos altos montes
aglomerados...
(...)
Há também os mais longos, como os decassílabos em “Cenário”,
no início:
Passei por essas plácidas colinas
E vi das nuvens, silencioso, o gado,
Pascer nas solidões esmeraldinas.
(...)
Quanto às rimas, a autora utiliza as chamadas imperfeitas
(terminações de versos semelhantes), como se pode observar no Romance XIII:
Eis que chega ao Serro Frio,
à terra dos diamantes,
o Conde de Valadares,
fidalgo de nome e sangue,
José Luís de Meneses
de Castelo Branco e Abranches.
Ordens traz do grão Ministro
de perseguir João Fernandes.
(...)
A escritora faz uso, ainda, de rimas perfeitas (terminação
em sons vocálicos e consonantais idênticos), tal como no Romance VI:
Já se preparam as festas
para os famosos noivados
que entre Portugal e Espanha
breve serão celebrados.
Ai, quantas cartas e acordos
redigidos e assinados!
(...)
CONTEXTO HISTÓRICO
Romanceiro da Inconfidência caracteriza- se como uma obra
lírica, de reflexão, mas com um contexto épico, narrativo, firmemente calcado
na história. Em 1789, inspirados pelas idéias iluministas européias e pela
independência dos Estados Unidos, alguns homens tentam organizar um movimento
para libertar a colônia brasileira de sua metrópole portuguesa.
Uma pesada carga tributária sobre o ouro extraído das Minas
Gerais deixava os que viviam dessa renda cada vez mais descontentes. Assim,
donos de minas, profissionais liberais – entre os quais alguns poetas árcades –
e outros começaram a conspirar contra Portugal. Contudo, o movimento é delatado
e os envolvidos, presos. Alguns são condenados ao exílio, e o único a ser
executado, na forca, é Tiradentes, em 21 de abril de 1792.
GÊNESE EM OURO PRETO
Nessa obra, Cecília Meireles utiliza-se, pela primeira vez,
da temática social, de interesse histórico e nacional, enfatizando a luta pela
liberdade. Sem aprofundadas reflexões filosóficas, mas com muita sensibilidade,
a autora dá uma visão mais humana dos protagonistas daquele que foi o primeiro
grande movimento de emancipação do Brasil: a Inconfidência Mineira.
Como se trata de um fato histórico, e dos mais importantes,
a autora tem o cuidado de não se limitar a relatá-lo em versos, mas procura
recriá-lo por meio da imaginação.
A gênese da obra ocorreu, de acordo com depoimento da
escritora, quando foi pela primeira vez à cidade de Ouro Preto (ex-Vila Rica),
local onde se organizou o movimento de Tiradentes e seus companheiros.
Cecília afirmou: “Todo o presente emudeceu, como platéia
humilde, e os antigos atores tomaram suas posições no palco. Vim com o modesto
propósito jornalístico de descrever as comemorações de uma Semana Santa; porém
os homens de outrora misturaram-se às figuras eternas dos andores; (...) na
procissão dos vivos caminhava uma procissão de fantasmas (...). Era, na
verdade, a última Semana Santa dos inconfidentes: a do ano de 1789”.
ROMANCES
Tematicamente, pode-se localizar a ambientação da narrativa
nos primeiros 19 romances. A descoberta do ouro, o início de uma nova
configuração social com a chegada dos mineradores e toda a estrutura formada
para atendê-los, os costumes, os “causos”, como o da donzela morta por uma
punhalada desferida pelo próprio pai (Romance IV), ou os cantos dos negros nas
catas (VII), o folclore, a história do contratador João Fernandes e de sua
amante Chica da Silva e o alerta sobre a traição do Conde de Valadares (XIII a
XIX). A ênfase recai na cobiça do ouro, que torna as pessoas inescrupulosas.
Vila Rica é o “país das Arcádias”, numa alusão direta ao
neoclassicismo brasileiro, com seus principais poetas e suas pastoras:
Glauceste Satúrnio e Nise, Dirceu e Marília. No belo Romance XXI, as primeiras
idéias de liberdade começam a circular.
A partir do Romance XXIV, a insatisfação, a revolta contra a
corte portuguesa é explicitada com a confecção de uma bandeira (Libertas quae
sera tamen). Do XXVII ao XLVII, há a atuação do alferes Joaquim José da Silva
Xavier, o Tiradentes, que procurava atrair mais gente para a conspiração, em
longas cavalgadas pela estrada que levava ao Rio. Contudo, os planos são
abortados antes de ser efetivamente colocados em prática por causa dos
delatores, principalmente Joaquim Silvério dos Reis (XXVIII):
(...)
Ai, que o traiçoeiro invejoso
junta às ambições a astúcia.
Vede a pena como enrola
arabescos de volúpia,
entre as palavras sinistras
desta carta de denúncia!
(...)
Segue-se uma devassa completa, prisões, confisco de bens,
falsos testemunhos, a morte de Cláudio Manuel da Costa, o Glauceste Satúrnio,
sob condições misteriosas (XLIX), a execução de Tiradentes, antecipada na fala
do carcereiro (LII) e explicitada nos romances LVI a LXIII:
(...)
Já lhe vão tirando a vida.
Já tem a vida tirada.
Agora é puro silêncio,
repartido aos quatro ventos,
já sem lembrança de nada. (...)
Após um período como magistrado, Tomás Antônio Gonzaga, o
Dirceu, é também preso, julgado e condenado ao exílio em Moçambique (LIV e LV).
Lá, longe de sua ex-noiva e agora inconsolada Maria Dorotéia Joaquina de
Seixas, a Marília (LXXIII), casa-se com Juliana de Mascarenhas (LXXI).
Os romances finais falam do poeta Alvarenga Peixoto, sua
esposa, Bárbara Eliodora, e sua filha, Maria Ifigênia (LXXV a LXXX); o retrato
de Marília idosa; lamentos pela calamidade mineira; e a loucura e morte de D.
Maria I (LXXXII e LXXXIII). A obra é concluída com a “Fala aos
Inconfidentes Mortos”:
E aqui ficamos
todos contritos,
a ouvir na névoa
o desconforme,
submerso curso
dessa torrente
do purgatório...
Quais os que tombam,
em crimes exaustos,
quais os que sobem,
purificados?
Um dos romances mais significativos, o XXIV, relaciona o ato
da confecção da bandeira dos inconfidentes com todo o movimento que eles
preparavam em Ouro Preto:
(...)
Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
uns sugerem, uns recusam,
uns ouvem, uns aconselham.
Se a derrama for lançada,
há levante, com certeza.
Corre-se por essas ruas?
Corta-se alguma cabeça?
Do cimo de alguma escada,
profere-se alguma arenga?
Que bandeira se desdobra?
Com que figura ou legenda?
Coisas da Maçonaria,
do Paganismo ou da Igreja?
A Santíssima Trindade?
Um gênio a quebrar algemas?
Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
entre sigilo e espionagem,
acontece a Inconfidência.
E diz o Vigário ao Poeta:
“Escreva-me aquela letra
do versinho de Virgílio...”
E dá-lhe o papel e a pena.
E diz o Poeta ao Vigário,
com dramática prudência:
“Tenha meus dedos cortados
antes que tal verso escrevam...”
LIBERDADE, AINDA QUE TARDE,
ouve-se em redor da mesa.
E a bandeira já está viva,
e sobe, na noite imensa.
E os seus tristes inventores
já são réus — pois se atreveram
a falar em Liberdade
(que ninguém sabe o que seja).
Através de grossas portas,
sentem-se luzes acesas,
— e há indagações minuciosas
dentro das casas fronteiras.
“Que estão fazendo, tão tarde?
Que escrevem, conversam, pensam?
Mostram livros proibidos?
Lêem notícias nas gazetas?
Terão recebido cartas
de potências estrangeiras?”
(Antiguidades de Nîmes
em Vila Rica suspensas!
Cavalo de La Fayette
saltando vastas fronteiras!
Ó vitórias, festas, flores
das lutas da independência!
Liberdade – essa palavra,
que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda!)
E a vizinhança não dorme:
murmura, imagina, inventa.
Não fica bandeira escrita,
mas fica escrita a sentença.
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