TESOURO ANALFABETO
A cultura oral brasileira, uma riqueza a ser preservada
Uma das peculiaridades mais negativas da colonização
portuguesa foi a imposição de uma
política deliberada de analfabetismo no Brasil. Entre as
proibições aplicadas à colônia, a mais draconiana foi o veto à utilização de
impressoras, mantido a ferro e fogo durante 308 anos. Somente a partir de 1808,
quando Dom João VI desembarcou no Rio de Janeiro, os brasileiros puderam
conhecer o uso da prensa de Gutenberg. Não é só: a essa altura, o país não
dispunha de instituto algum de ensino superior – a população reivindicava, mas
jamais foi atendida pela Metrópole. Com tal política, a situação do Brasil na
área da cultura escrita era muito ruim no início do século 20, inclusive em
comparação com as demais colônias da América. Nos Estados Unidos, a primeira
universidade foi fundada na década de 1630, apenas vinte anos após o início da colonização;
nas colônias espanholas, havia seis universidades completas no início do século
19. No campo da alfabetização, apenas 3% dos brasileiros eram letrados no
momento de nossa Independência, quando nos Estados Unidos esse indicador estava
em torno de 15%.
Corrida contra o
tempo
Partindo desse atraso, tivemos de correr muito atrás dos outros.
As primeiras faculdades brasileiras começaram a funcionar em 1825 – e a primeira
universidade, apenas em 1934. A rigor, a cultura letrada só veio a se firmar
como realidade no século 20, e a alfabetização de toda a população será uma
realidade do século 21, depois do grande esforço pela universalização feito nos
últimos oito anos. Certamente, ainda há muito a fazer. Mas o fato é que a
realidade da escassa cultura letrada não impediu que se construísse no Brasil
uma das mais ricas culturas do Ocidente. A aparente contradição se explica pela
intensa participação dos analfabetos nesse processo. Quase tudo que é
importante em nossa cultura – música, dança, culinária, vocabulário, artes plásticas,
comportamentos – foi sendo desenvolvido por pessoas que não sabiam ler nem
escrever. Foram conhecimentos transmitidos por ditados populares, rimas e
histórias. Essa cultura se desenvolveu resolvendo um problema de monta: a
adaptação da civilização ocidental à floresta tropical, a um ambiente
inteiramente novo, no qual com frequência todo o conhecimento técnico dos colonizadores
se mostrava inútil. Os europeus precisaram aprender a viver aqui, e aprender isso
com os nativos, num complexo processo que continua ainda hoje. E transmitiram por
via oral a maior parte dos conhecimentos assim assimilados. Além do mais, esse
processo de criação de cultura se enriqueceu a partir da importação maciça de
escravos africanos.
Escrita só para
letrados
Tudo isso junto deu um sentido de universalidade ao povo
brasileiro, ao mesmo tempo que criou um problema para a pequena elite letrada.
A rigor, a escrita servia basicamente para a administração pública. Por isso,
hoje, toda nossa história tem de ser desencravada, a duras penas, de documentos
oficiais. Neles estão as ralas referências a tudo que se fez em termos
culturais no Brasil. A cultura escrita escassa, combinada com a cultura oral
imensamente rica, é ainda um dado fundamental do Brasil. O grande problema dos alfabetizados
brasileiros continua a ser o de, pouco a pouco, trazer esse grande cabedal
popular para a forma escrita. Parece fácil, mas na realidade não é.
Foi apenas depois da República que se iniciou a massificação do ensino – e os eruditos começaram
a lançar seu olhar para a cultura popular. Levou ainda algum tempo para que o
registro escrito das manifestações populares chegasse a mostrar na íntegra
formas de pensar desenvolvidas por analfabetos. Somente com Guimarães Rosa, na segunda
metade do século passado, surgiu um romance escrito como monólogo interior
(isto é, como registro escrito do modo de pensar) de um analfabeto, que é
Grande Sertão - Veredas. Surge assim um problema: considerando que até hoje são
limitados os registros por escrito do mais importante modo de pensar da cultura
brasileira, a imensa maioria dos livros não está adaptada ao pensamento
daqueles que os utilizam.
A rigor, eles muitas vezes dizem coisas que são desmentidas
pela prática cotidiana. Outra consequência: muitas pessoas cultas, mesmo com boas
intenções, acabam considerando “erradas” as informações culturais dos menos
letrados. Mas foi sobre esses “erros” que se construiu a cultura que nos
distingue dos povos a nosso redor, e que marca nossa presença neste planeta.
Registros para o
futuro
Se não levarmos em consideração dados tão fundamentais, viveremos
sempre em insegurança intelectual. Ainda há muito trabalho a ser feito para registrar
festas, músicas, ditados, frases, danças, receitas (médicas ou culinárias) e
outras manifestações tradicionais, para que tenhamos uma noção clara da imensa
produção cultural brasileira. Trata-se de um trabalho fundamental para o futuro
do Brasil, e não há exercício mais rico para uma pessoa letrada do que
registrar essas manifestações, onde puder encontrá-las. A rigor, o futuro
cultural do país, agora letrado, vai depender do quanto se consiga fazer desses
registros. Cada um deles é precioso, mesmo que não pareça, e isso fica evidente
quando se observa como fizeram falta no passado. Para que se tenha uma ideia:
até hoje se conhece um só desenho da cidade de São Paulo antes de 1810, feito
por um bispo que por ali passou – e resolveu ilustrar esse pequeno ponto no
mapa que fazia na viagem. É quase um desenho infantil, mas já foi reproduzido
em centenas de livros, porque é único. Na falta de cenas da cidade – ou de um
retrato que seja de seus antigos habitantes, gente como Raposo Tavares, Fernão
Dias ou Anhanguera, só para ficar nos casos mais conhecidos – aquele pequeno
desenho se tornou o testemunho fundamental de toda uma era. Documentos como esse,
também em registros escritos, podem ser feitos aos milhares, em todo o país. O
problema é registrar a cultura analfabeta antes que se acabe.
JORGE CALDEIRA é
doutor em ciência política e jornalista.
É autor de Mauá, empresário do Império,
Viagem pela história do Brasil e A nação mercantilista,
entre outros trabalhos.
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