O LIVRO

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terça-feira, 2 de junho de 2015

TESOURO ANALFABETO - Jorge Caldeira

Planta da Cidade de S. Paulo
Situada em 23°,, 33’,, 30” de Latitude Sul; e em 331°,, 24”,, 30”
de Longitude pelo Meridiano da Ilha do Ferro: Var. da Agulha
7,, 15”,, N&.
  • Acréscimo posterior, a lápis: Levantada em 1810 pelo Engenheiro Rufino José Felizardo e Costa


TESOURO ANALFABETO
A cultura oral brasileira, uma riqueza a ser preservada

Uma das peculiaridades mais negativas da colonização portuguesa foi a imposição de uma
política deliberada de analfabetismo no Brasil. Entre as proibições aplicadas à colônia, a mais draconiana foi o veto à utilização de impressoras, mantido a ferro e fogo durante 308 anos. Somente a partir de 1808, quando Dom João VI desembarcou no Rio de Janeiro, os brasileiros puderam conhecer o uso da prensa de Gutenberg. Não é só: a essa altura, o país não dispunha de instituto algum de ensino superior – a população reivindicava, mas jamais foi atendida pela Metrópole. Com tal política, a situação do Brasil na área da cultura escrita era muito ruim no início do século 20, inclusive em comparação com as demais colônias da América. Nos Estados Unidos, a primeira universidade foi fundada na década de 1630, apenas vinte anos após o início da colonização; nas colônias espanholas, havia seis universidades completas no início do século 19. No campo da alfabetização, apenas 3% dos brasileiros eram letrados no momento de nossa Independência, quando nos Estados Unidos esse indicador estava em torno de 15%.

Corrida contra o tempo
Partindo desse atraso, tivemos de correr muito atrás dos outros. As primeiras faculdades brasileiras começaram a funcionar em 1825 – e a primeira universidade, apenas em 1934. A rigor, a cultura letrada só veio a se firmar como realidade no século 20, e a alfabetização de toda a população será uma realidade do século 21, depois do grande esforço pela universalização feito nos últimos oito anos. Certamente, ainda há muito a fazer. Mas o fato é que a realidade da escassa cultura letrada não impediu que se construísse no Brasil uma das mais ricas culturas do Ocidente. A aparente contradição se explica pela intensa participação dos analfabetos nesse processo. Quase tudo que é importante em nossa cultura – música, dança, culinária, vocabulário, artes plásticas, comportamentos – foi sendo desenvolvido por pessoas que não sabiam ler nem escrever. Foram conhecimentos transmitidos por ditados populares, rimas e histórias. Essa cultura se desenvolveu resolvendo um problema de monta: a adaptação da civilização ocidental à floresta tropical, a um ambiente inteiramente novo, no qual com frequência todo o conhecimento técnico dos colonizadores se mostrava inútil. Os europeus precisaram aprender a viver aqui, e aprender isso com os nativos, num complexo processo que continua ainda hoje. E transmitiram por via oral a maior parte dos conhecimentos assim assimilados. Além do mais, esse processo de criação de cultura se enriqueceu a partir da importação maciça de escravos africanos.

Escrita só para letrados
Tudo isso junto deu um sentido de universalidade ao povo brasileiro, ao mesmo tempo que criou um problema para a pequena elite letrada. A rigor, a escrita servia basicamente para a administração pública. Por isso, hoje, toda nossa história tem de ser desencravada, a duras penas, de documentos oficiais. Neles estão as ralas referências a tudo que se fez em termos culturais no Brasil. A cultura escrita escassa, combinada com a cultura oral imensamente rica, é ainda um dado fundamental do Brasil. O grande problema dos alfabetizados brasileiros continua a ser o de, pouco a pouco, trazer esse grande cabedal popular para a forma escrita. Parece fácil, mas na realidade não é.
Foi apenas depois da República que se iniciou  a massificação do ensino – e os eruditos começaram a lançar seu olhar para a cultura popular. Levou ainda algum tempo para que o registro escrito das manifestações populares chegasse a mostrar na íntegra formas de pensar desenvolvidas por analfabetos. Somente com Guimarães Rosa, na segunda metade do século passado, surgiu um romance escrito como monólogo interior (isto é, como registro escrito do modo de pensar) de um analfabeto, que é Grande Sertão - Veredas. Surge assim um problema: considerando que até hoje são limitados os registros por escrito do mais importante modo de pensar da cultura brasileira, a imensa maioria dos livros não está adaptada ao pensamento daqueles que os utilizam.
A rigor, eles muitas vezes dizem coisas que são desmentidas pela prática cotidiana. Outra consequência: muitas pessoas cultas, mesmo com boas intenções, acabam considerando “erradas” as informações culturais dos menos letrados. Mas foi sobre esses “erros” que se construiu a cultura que nos distingue dos povos a nosso redor, e que marca nossa presença neste planeta.

Registros para o futuro
Se não levarmos em consideração dados tão fundamentais, viveremos sempre em insegurança intelectual. Ainda há muito trabalho a ser feito para registrar festas, músicas, ditados, frases, danças, receitas (médicas ou culinárias) e outras manifestações tradicionais, para que tenhamos uma noção clara da imensa produção cultural brasileira. Trata-se de um trabalho fundamental para o futuro do Brasil, e não há exercício mais rico para uma pessoa letrada do que registrar essas manifestações, onde puder encontrá-las. A rigor, o futuro cultural do país, agora letrado, vai depender do quanto se consiga fazer desses registros. Cada um deles é precioso, mesmo que não pareça, e isso fica evidente quando se observa como fizeram falta no passado. Para que se tenha uma ideia: até hoje se conhece um só desenho da cidade de São Paulo antes de 1810, feito por um bispo que por ali passou – e resolveu ilustrar esse pequeno ponto no mapa que fazia na viagem. É quase um desenho infantil, mas já foi reproduzido em centenas de livros, porque é único. Na falta de cenas da cidade – ou de um retrato que seja de seus antigos habitantes, gente como Raposo Tavares, Fernão Dias ou Anhanguera, só para ficar nos casos mais conhecidos – aquele pequeno desenho se tornou o testemunho fundamental de toda uma era. Documentos como esse, também em registros escritos, podem ser feitos aos milhares, em todo o país. O problema é registrar a cultura analfabeta antes que se acabe.

 JORGE CALDEIRA é doutor em ciência política e jornalista.
É autor de Mauá, empresário do Império,
Viagem pela história do Brasil e A nação mercantilista,
entre outros trabalhos.

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